O Heavy Metal sob um olhar etnográfico

No início da década de 70 uma banda lançou um disco estranho. A capa consistia na pintura de uma bruxa em frente a uma velha mansão — tanto o debut quanto o conjunto eram batizados de Black Sabbath. Para o ouvinte daqueles anos, familiarizado com blues, folk e o rock de Steppenwolf e Led Zeppelin, com certeza deveria ter estranhado em demasia a faixa de abertura daquela invulgar bolacha; toda composta na tenebrosa escala Diabolus in Música, a triatônica, e cujas letras relatavam o horror de um homem comum que presenciara, por acaso, a realização de um ritual de ocultismo — aquele foi a criação daquilo que ficaria conhecido como Heavy Metal.

Desde os primeiros riffs tenebrosos do Black Sabbath, a música pesada tomou forma nos anos setenta, explodiu nos oitenta, entrou em decadência na década de noventa e volta de novo com toda força no principio do novo milênio. São, ao todo, quase quarenta anos de guitarras estridentes, baterias destruidoras e uma variedade tão grande de estilos e tendências que até mesmo para o admirador mais assíduo fica difícil conhecer a música em sua completude.

Não há dúvida que a complexidade do Heavy Metal o transformou numa das inúmeras e mais complexas sub-culturas abrigada sob o extenso guarda chuva da cultura ocidental. Portanto, como fenômeno cultural e sociológico, faltava-lhe um estudo rigoroso que examinasse seus elementos mais básicos — isto é, uma análise totalmente despojada de dogmatismo e preconceito conservador com que alguns sacerdotes protestantes lançaram mão ao tentar desnudar a mensagem “oculta do rock” em livros de gosto duvidoso. O que faz com que este estilo tenha hoje uma legião de admiradores? O que estes fãs, músicos e produtores possuem em comum? O que a música representa para eles? Quais são as verdadeiras raízes do Heavy Metal? Por que ele explora temas considerados tão nefastos para o homem comum? E por que a sociedade em geral o vê com tantas reservas e restrições? Estas incógnitas são investigadas pelo antropólogo canadense Sam Dunn, um fã devotado do Heavy Metal e diretor do documentário “Metal: a headbanger’s Journey”.

Para a sua pesquisa, Dunn lança mão do já clássico método da observação participante: indo aos shows, entrevistando os fãs e músicos como Lemmy Kilmister, do Motorhead; Tom Arraya, do Slayer; Bruce Dickinson, do Iron Maiden e Ronnie James Dio, do Heaven And Hell; além de sociólogos, historiadores e estudiosos da música.

Outros compositores clássicos que também exerceram grande influência para o Heavy Metal, embora no documentário não sejam mencionados, foram Antonio Vivaldi, Sebastian Bach, Edward Grieg e Paganini — guitarristas como Richie Blackmore e Eddie Van Haley foram os primeiros a fundir o erudito com o rock.

Dunn poderia ter sido mais profundo ao abordar a questão da música clássica se entrevistasse a banda que radicalizou a fusão: os finlandeses do Apocalyptica. O blues também foi um dos elementos na criação no Heavy Metal. Tommi Iomi, do Black Sabbath, afirma no documentário que muito antes da banda se decidir pelo estilo que a consagrou, era um típico conjunto de blues e jazz. Nem preciso mencionar, mas quase 100% dos solos de Iomi e uma grande quantidade de bandas de hard rock e metal possuem suas músicas calcadas na escala criada pelos músicos de blues: a popularíssima pentatônica.

Outro ponto importante é ser o Heavy Metal um estilo gerado principalmente nas periferias, nos bairros de classe baixa das cidades inglesas ou das metrópoles americanas. Não foi sem razão que Bruce Dickinson disse que o metal era a opera da classe operária. Um fato ilustrativo é o relato de Lemmy sobre reunir-se toda a noite, durante sua infância, com seus amigos, em frente a uma cabine telefônica para contar histórias. Motivo? Era a única fonte de luz disponível na comunidade.

Ronnie James Dio esclarece a origem do famoso símbolo dos “chifres”. Sua origem remonta ao folclore italiano, chamando-se originalmente de “Meloik”, era feito por sua avó quando passeava com o pequeno Ronnie James pelas ruas e via uma pessoa de quem desgostava, usava-o como uma maneira supersticiosa de espantar o mau olhado, também podia ser usado para jogar emanações negativas em alguém; Dio admite não ter efetivamente criado o símbolo, mas o aperfeiçoou e tornou-o uma marca registrada não só do Metal, mas de todo o rock.

Estranho foi quando Tom Arraya admitiu ter uma formação católica, ao mesmo tempo em que lança um disco intitulado “God hate us All”. A escusa para justificar esta ambiguidade simplesmente não convence. Muito mais coerente com sua arte foi seu companheiro de banda Kerry King: “Gosto de mandar bala na religião porque é a maior máquina de lavagem cerebral existente e totalmente legalizada nos Estados Unidos”.

O capítulo destinado a investigar o Black Metal norueguês fica sujeito a restrições. Sam Dunn se detém apenas aos incidentes em que extremistas queimaram dezenas de igrejas no início dos anos noventa. O erro é corrigido nos extras, em que há um documentário destinado à investigação do Norwein Black Metal. O antropólogo faz bem em rastrear-lhe as partes fundamentais: o orgulho da Noruega em fazer parte de uma cultura de “gigantes” — a cultura vinking — e o ódio contra tudo que deturpe o sentido real dessa cultura, seja o capitalismo, o socialismo, o cristianismo, a democracia ou qualquer uma das instituições advindas da modernidade. O metal negro encaixa-se na definição de fundamentalismo usada pelos sociólogos Anton Shupe e Jeffrey Hadden, que o classificam como um movimento: “que visa recuperar a autoridade sobre uma tradição sagrada que deve ser reintegrada como antídoto contra uma sociedade que se soltou de suas amarras institucionais”. Curiosamente, a definição também tem muito sentido quando usada para descrever o fundamentalismo protestante dos Estados Unidos.

Uma outra falha de Sam Dunn foi não ter feito a ligação entre Heavy Metal, literatura e cinema. É sabido que muitos músicos tiraram os temas sombrios de escritores como Edgar Allan Poe, Lord Byron, Novalis, Stephen King, Charles Baudelaire, H.P. Lovecraft, Willian BlackWood e escritores especializados em fantasia, como J.R.R Tolkien — Steve Harris, por exemplo, é um grande leitor de poesia inglesa. Quanto à sétima arte, filmes de terror como “O Exorcista”, “Psicose” e “O Homem de Palha” foram muito influentes na formação do gênero.

As falhas da pesquisa não tiram o brilho nem o mérito do jovem antropólogo Sam Dunn, que responde de maneira satisfatória às perguntas que se propôs solucionar. A Headbanger’s Journey é um belo documentário que não vai interessar apenas aos fãs do som pesado, mas todo e qualquer estudioso da história da música ocidental.

Texto: Ricardo Lima

Ricardo Lima é sociólogo e amante de boa música.

Imagem: Metalfilms.INC

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